Parte do texto a seguir faz parte da pesquisa de Antonio Brand (BRAND, Antonio J. O impacto da perda da terra sobre na tradição kaiowá/guarani. Os difíceis caminhos da Palavra . Tese de doutorado, História, PUC/RS, 1998).
Os Guarani estão divididos em três parcialidades que vivem no Paraguai, na Argentina, no Uruguai e no Brasil: os Mbyá, com uma população estimada em 10 a 11 mil; os Avá-Chiripá, com cerca de 9 mil; e os Pài/Kaiowá, com 35 a 40 mil pessoas. A população Guarani que habita a região sul do estado de Mato Grosso do Sul é de cerca de 25 mil e, na sua grande maioria, corresponde à parcialidade Kaiowá e, em menor número, aos Ñandeva. Os Ñandeva se auto-denominam Guarani e, portanto serão tratados desta forma no presente texto. Embora em menor número, eles estão presentes em várias aldeias Kaiowá, por isso o uso da designação Kaiowá/Guarani para referir-se às duas parcialidades. "Há, contudo, entre os subgrupos Guarani-Ñandeva, Guarani-Kaiowa e Guarani-Mbya existentes no Brasil, diferenças nas formas lingüísticas, costumes, práticas rituais, organização política e social, orientação religiosa, assim como formas específicas de interpretar a realidade vivida e de interagir segundo as situações em sua história e em sua atualidade"(cf. http://www.isa.org.br/pib/epi/terena - Instituto Sócio Ambiental - Acessado em 31/01/06).
Os Kaiowá habitavam uma região de difícil acesso na serra de Amabai, atual fronteira entre Mato Grosso do Sul e Paraguai e, por isso, permaneceram praticamente isolados até meados do século XIX. Após a guerra do Paraguai, que teve como parte do cenário de batalha o território Kaiowá, estes passaram a ter cada vez mais contato com os não indígenas. O cultivo e extração da erva-mate, explorada em grande intensidade na região a partir da década de 1880, passou a incorporar significativo número de Kaiowá e Guarani como mão-de-obra.
L OCALIZAÇÃO DO TERRITÓRIO GUARANI / K AIOWÁ NO MS

Fonte: Geoprocessamento do Programa Kaiowá Guarani, NEPPI, UCDB (2005)
Em 1882, o Governo Federal arrendou a região para a Cia Matte Larangeiras, que iniciou a exploração da erva-mate em todo o território Kaiowá/Guarani. Ainda em pleno domínio desta Companhia, o SPI demarcou, em 1915, a primeira Reserva com 3.600 ha para usufruto dos Kaiowá. Até 1928 são demarcadas para os Kaiowá/Guarani, em toda a região Sul do Estado, um total de oito Reservas, totalizando 18.297 ha . Inicia-se então, com o apoio direto dos órgãos oficiais, um processo sistemático e relativamente violento de confinamento da população Guarani nestas Reservas.
Com o desmatamento da região e a implantação das fazendas de gado e das Colônias agrícolas, em especial a CAND - Colônia Agrícola Nacional de Dourados, a partir da década de 40, dezenas de aldeias Kaiowá/Guarani tiveram que ser abandonadas pelos índios, sendo suas terras incorporadas pela colonização. A população dessas aldeias foi aleatoriamente "descarregada" nas Reservas. Esse processo de redução e confinamento compulsório seguiu inexorável, à revelia de toda a legislação já existente e a favor da proteção dos direitos indígenas à terra, até o final da década de 70. É necessário ressaltar que entendemos por confinamento compulsório a transferência sistemática e forçada das diversas aldeias Kaiowá/Guarani para dentro das oito Reservas demarcadas pelo governo entre 1915 e 1928 (Brand, 1998).A partir de 1978, algumas comunidades, com o apoio de setores da sociedade civil e dispostas a não aceitarem perder suas terras tradicionais, iniciam, com êxito, a luta para interromper essa prática histórica, comum em toda a região, pois enquanto eram necessários como mão-de-obra nas fazendas, os Kaiowá/Guarani podiam permanecer em suas aldeias, porém, concluído o desmatamento, eram expulsos, cabendo, em muito casos, aos órgãos oficiais a tarefa de efetivar a transferência para as Reservas.
Áreas indígenas Kaiowá Guarani e Terena no Estado de Mato Grosso do Sul

Fonte: Geoprocessamento do Programa Kaiowá/Guarani, NEPPI, UCDB (2005)
A transferência de inúmeras aldeias e famílias extensas para dentro das Reservas demarcadas entre os anos de 1915-1928, não significou apenas o deslocamento geográfico dessas aldeias e a correspondente perda das terras. A vida dentro das Reservas impõe aos Kaiowá/Guarani profundas transformações na relação com o território tradicional, pois, ao perder a sua aldeia, eles são obrigados a disputar um lote cada vez mais reduzido dentro das mesmas. A crescente imposição do trabalho assalariado surge como alternativa de subsistência, mas atinge as bases tradicionais de sua economia, reforça a exploração como mão-de-obra barata e desqualificada, obrigando os índios a passarem meses distantes de suas famílias. As oito usinas de álcool e açúcar em funcionamento no Estado, assinaram, no ano de 1999 e em fevereiro de 2000, o denominado "Pacto Social" (acordo firmado entre órgãos públicos e entidades não governamentais) que visa regularizar as relações de trabalho mediante o registro dos trabalhadores indígenas. Porém, com esta medida, oficializou-se a permanência dos índios fora de suas aldeias, em contratos sucessivos de 90 dias, durante seis a oito meses em cada ano.
Finalmente, temos as alterações no sistema de chefia, com a imposição (pelo SPI) da figura do capitão. Tudo isto vai se refletir na gradual inviabilização da religião tradicional, entendida aqui como as prática e crenças, por intermédio das quais expressam a sua relação com o sobrenatural, que, ao mesmo tempo, constituem-se em referenciais básicos indicativos de cultura. O impasse maior para a manutenção do modelo cultural Kaiowá/Guarani está, justamente, nas Reservas demarcadas até 1928. É nelas que se verificam, inclusive, significativos índices de suicídios.
A partir dos anos 1970, com a mecanização e a especialização em torno da soja e do gado de corte, a presença da mão-de-obra indígena deixou de ser indispensável e, em alguns casos indesejável. Por essa época as famílias que localizavam-se nas fazendas da região foram transferidas para oito reservas que haviam sido demarcadas entre as décadas de 1910 e 1940 pelo Serviço de Proteção ao Índio, próximas à cidades da região, como Caarapó, Amambaí e Dourados. A exigüidade das terras para o número total de indígenas tem sido um grave problema. Hoje, cerca de 30 mil Kaiowá e Guarani no estado ocupam um área de cerca de 40 mil hectares.
Segundo classificação do CIMI (Conselho Indigenista Missionário), a situação das terras indígenas em Mato Grosso do Sul é a seguinte: 17 registradas, 5 homologadas, 3 declaradas, 3 identificadas, 10 a identificar, 8 reservadas e 74 sem providências. A terra indígena mais recentemente demarcada é a Taquara, situada no município de Juti, onde os Kaiwá de Taquara passam a possuir 9.700 hectares reconhecidos pela legislação.
|